Estação Primeira de Mangueira – Sinopse 2020

CARNAVAL DE 2020

SINOPSE DO ENREDO

A Verdade Vos Fará Livre

 

Ao vislumbrar uma face para Jesus Cristo, a Estação Primeira de Mangueira olha para a sua gente com a intenção de evidenciar que a experiência de vida de Cristo está muito mais associada com as angústias dos oprimidos do que com a imagem embranquecida, eurocêntrica, machista e patriarcal que foi pintada em um retrato secular. Ao fazer tal ato, dando-lhe contornos artísticos próprios, a verde e rosa realiza escolhas visuais. Compreender que o Jesus caucasiano – de olhos claros e madeixas alouradas – é uma invenção de uma iconografia cristã orquestrada é condição tão importante para a compreensão do enredo quanto o entendimento da ressignificação morfológica da figura central da biografia que apresentamos ao longo do desfile.

É importante considerar que a ideia de um Jesus de pele clara surgiu na Idade Média. É unanimidade entre historiadores que o avanço do Cristianismo pela Europa contribuiu para a difusão de um modelo que não levou em consideração que um homem Galileu – queimado há mais de dois mil anos pelo sol do oriente médio – estava longe de ter a aparência das imagens maciçamente disseminadas pelas correntes artísticas advindas da Europa. É portanto inverossímil que Jesus tenha o tom de pele e as semelhanças físicas resguardadas por sua imagem mais bem difundida no imaginário coletivo. Não há indícios bíblicos ou documentais que comprovem ou refutem a afirmação, mas já é sabido que, levando-se em consideração a origem geográfica, é muito provável que a figura central do cristianismo tivesse um biotipo distinto daquele que se tornou convencional, a pele num tom mais escuro, assim como os cabelos e os olhos.

Religiosamente, há quem pergunte que diferença faz a cor ou a imagem de Jesus pintada nos retratos, enfatizando que os ensinamentos fraternais e igualitários do homem que é a base do cristianismo sobrepõem a sua própria imagem. Para questões associadas à prática religiosa, enquanto uma experiência individual, a questão talvez encontre sentido. Para o entendimento de aspectos socioculturais não. Já é sabido – e não é de hoje – o poder das imagens e das representações de modelos, já que é uma inclinação humana atrair-se por pessoas que se pareçam consigo. Apresentar a biografia de Jesus como enredo, acrescentando ao tema uma possibilidade de diversidade de contornos físicos no Brasil do “Deus acima de tudo”, é disputar narrativa com aqueles que se apropriaram dos ensinamentos do Jesus histórico, domesticaram seu conteúdo e passaram a usá-lo para seus interesses. A figura de Jesus, no Brasil do vigésimo ano do século XXI, tornou-se uma espécie de fiadora de uma lógica conservadora que reafirma os mais antigos valores de um país fundado à luz da exploração indígena, do racismo difundido com a prática da escravidão negra, do machismo baseado no patriarcado e na desigualdade social desmedida que segue “sacrificando” e “crucificando”.

É interessante pensar que os conservadores atuais fazem uso da célebre figura que apresentamos como enredo colocando-o como uma espécie de colaborador de um posicionamento muitas vezes anticristão. A verdade é que a figura de Jesus foi domesticada para atender a interesses políticos e religiosos e é sobre isso que o enredo proposto se debruça para apresentar sua narrativa, ou, melhor, sua contra narrativa.

Para apresentar a ideia de um Jesus de várias faces, dando-lhe os possíveis contornos estéticos próximos ao morro da Mangueira e aos grupos minoritários do Brasil do século XX, segue a sinopse do enredo batizado de A VERDADE VOS FARÁ LIVRE:

“Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem mais popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes sua face mais amorosa e desprovida de intolerância. Sábio, separou o joio do trigo, semeou terrenos férteis e jamais deixou uma ovelha sequer para trás.

Exaltou os humildes e condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se contra o comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos de seu tempo. Questionou o poder do império romano e condenou a opressão. Seu comportamento pacifista e suas ideias revolucionárias inflamaram o discurso dos algozes que passaram a excitar o estado a decretar sua sentença. O fim todos sabemos: Foi torturado, padeceu e morreu.

Séculos depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu nome, para o mal dito “de bem” – e com rígido contorno de moralidade – muito já foi realizado de forma estanque ao sentido mais completo do AMOR por ele difundido. O amor incondicional, irrestrito e ágape.

Por isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um. Ser um, exclui os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos, inclusive daqueles que a escolha pelo modelo “oficial” quis esconder. Sendo assim, sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina. Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a Ialorixá que professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de seu corpo.

Sem anunciar o inferno, ele prometeu que voltaria. Acredito que, se ele voltasse à terra por uma encosta que toca o céu – para nascer da mesma forma: pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para viver ao lado dos oprimidos e dar-lhes acolhimento – ele desceria pela parte mais íngreme de uma favela qualquer dessa cidade. Talvez na Vila Miséria*, região mais alta e habitada do Morro de Mangueira. Ali, uma estrela iluminaria a sala sem emboço onde ele nasceria menino outra vez. Então, ele cresceria entre os becos da Travessa Saião Lobato*, correria junto das crianças da Candelária*, espalharia suas palavras no Chalé* e no “Pindura” Saia*. Impediria que atirassem pedras contra os que vivem nas quebradas e nos becos do Buraco Quente*. Estaria do lado dos sem eira e nem beira estranhando ver sua imagem erguida para a foto postal tão distante, dando as costas para aqueles onde seu abraço é tão necessário.

Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi entendida.

Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza. Seria torturado com base nas mesmas ideias.
Morto, ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira, saudaríamos a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente com o que aqui fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa com samba e batucada. Vestiríamos todos nossa roupa mais cara. Aquela de paetês e purpurina. De cetim com joias falsas. Desfilaríamos diante dele e, em seu louvor, instauraríamos a lei que rege nossos três dias de folia. Sem pecado, irmanados e em pleno estado de graça.

Explicaríamos nessa ocasião que a cruz pesada que carregamos como fardo ao longo do ano nos é tirada das costas no carnaval. Por ter vencido a morte e sem ter o peso de sua cruz nas costas, ele sorri para a baiana que desce para se apresentar. Ele acena com a mão direita para a passista que amarra a sandália, enquanto a mão esquerda dá a benção para o ritmista que rompe o silencio com a levada de seu tamborim.

Fitando o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do horizonte. Sorri, como se pego em meio à brincadeira e se soubesse humano também. Entendendo que ali ele é rebento e que todos, sem exceção, são seu rebanho; ciente de que o pecado, por vezes, é invenção para garantir medo e servidão, ele pede para que toda essa gente que brinca anuncie enquanto canta sorrindo: A VERDADE VOS FARÁ LIVRE.”

Vila Miséria* Travessa Saião Lobato* Candelária* Chalé* Pindura Saia* Buraco Quente* – Todos os nomes referem-se a localidades ocupadas pela comunidade do Morro da Mangueira.


 

PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E TEXTO: LEANDRO VIEIRA