CARNAVAL DE 2020
SINOPSE DO ENREDONas Encruzilhadas da Vida, Entre Becos, Ruas e Vielas; A Sorte Está Lançada: Salve-se Quem Puder! |
Introdução
O enredo nasce da experiência de Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, o Laíla, 76 anos, como morador do Morro do Salgueiro, onde nasceu e passou boa parte de sua vida, desde a década de 1940.
Ganha contornos especiais quando, tempos atrás, Laíla – atual Diretor Geral de Carnaval da União da Ilha do Governador – tornou-se o principal defensor do retorno dos sambistas das comunidades à Avenida, como elementos fundamentais para o trabalho de suas respectivas Agremiações; e, principalmente, como guardiões dos fundamentos e tradições da maior festa popular do País: o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.
Através de sua luta e dos resultados alcançados pela Escola que dirigia, as coirmãs entenderam que era tempo de destinar parte do orçamento para vestir as alas de suas comunidades. Desde então, o espetáculo ganhou um novo alento.
Um novo processo de criação
Ao desembarcar na Ilha, Laíla – Diretor de Carnaval, Harmonia e Evolução da União da Ilha do Governador – trouxe novas ideias. Acreditava que, em vez de uma sinopse com palavras grifadas, ou versos pré-fabricados, os compositores teriam maior liberdade para produzir se tomassem a própria experiência de vida como linha condutora de sua obra.
Foi de uma troca de ideias com os integrantes da Comissão de Carnaval sobre o cotidiano das comunidades que nasceu o embrião do argumento. O resumo do encontro foi transformado num roteiro básico e transmitido aos compositores, com uma recomendação expressa: “Escrevam com o sentimento, ouçam a voz do coração” – esta prática, aliás, remonta aos grandes carnavais da União da Ilha.
Escolhido na quadra pela voz da comunidade, o samba-enredo passou a ser matriz para a criação de alegorias, fantasias e situações cênicas, que terão a favela como pano de fundo. Desde então, a experiência de diretores, componentes e torcedores em suas respectivas comunidades tornou-se matéria-prima para os arremates de um trabalho cada vez mais coletivo. Estas pessoas acabaram se acostumando a doar móveis, utensílios, roupas e acessórios descartados que, depois de um tratamento artístico, passaram a compor os mais diversos cenários desta opereta carioca.
JUSTIFICATIVA
A voz e a vez da Comunidade
Acostumada a falar a linguagem do povo, a União da Ilha do Governador dedicará o desfile no Carnaval de 2020 a uma reflexão sobre os principais problemas que afetam a sociedade, notadamente a camada mais pobre da população, instalada nas comunidades da periferia – e outras que estão se formando nos espaços públicos, sejam parques, praças e prédios abandonados ou invadidos.
Não se trata de uma questão exclusiva do Rio de Janeiro, pois os problemas enfrentados pelas comunidades cariocas não são diferentes dos que também afetam as de São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e de outras grandes cidades onde, teoricamente, parques industriais poderiam sinalizar como esperança de trabalho e sobrevivência para milhões de brasileiros.
Paralelamente a um desfile que se propõe a registrar um esquecimento cada vez maior dos compromissos assumidos pelo Estado (no mais amplo sentido da palavra) diante de obrigações básicas, a União da Ilha do Governador convida o público a fazer um passeio pelos becos, ruas e vielas dessas comunidades.
Apesar de as encruzilhadas concentrarem problemas comuns a toda a sociedade, é ali na comunidade que os reflexos são mais nítidos e impactantes.
Mesmo assim, essa brava gente aprendeu a superá-los de forma exemplar, através da solidariedade, da amizade, da força de vontade, determinação e de um contagiante mutirão de amor, capaz de superar os efeitos devastadores de um temporal; dos mais diferentes tipos de confrontos; e dos impactos causados pela impiedosa desigualdade social deflagrada por um sistema econômico.
Apesar de tantos pesares, essa gente, a nossa gente, a brava gente brasileira aprendeu a ser feliz. É capaz de transformar pequenos momentos de alegria em grandes eventos, que descem a ladeira, invadem a cidade e abraçam o mundo com a euforia de um intenso Carnaval.
Se a comunidade tanto fez pela União da Ilha do Governador, chegou o momento de a Escola retribuir, e fazer um pouco por ela.
Estamos juntos!
Para contar essa história, elegemos uma jovem mãe, negra, pobre, que pensa no futuro que poderá oferecer ao bebê que está sendo gerado em seu ventre. É uma brasileira como milhões de outras mulheres que vivem em situação semelhante. Ela acredita que a Escola de Samba também tem compromisso com a cidadania e que o Samba, com a sua magia, é capaz de operar verdadeiros milagres.
Torcemos para que este desfile desperte a nossa atenção para a necessidade de sermos mais amigos, solidários e que tenhamos mais respeito e amor aos nossos semelhantes. Sejam eles brasileiros ou não.
Ouçamos o que ela tem a dizer.
Nas encruzilhadas da vida
“Daqui de cima me encanto com as luzes da cidade. São pequenas contas que enfeitam ruas e avenidas, formando linhas retas e curvas, contornando um espaço que não é nosso.
Às vezes me pergunto: será que, lá de baixo, eles também se encantam com as luzes aqui do morro? Ou será que ainda não repararam nas coisas bonitas que também existem do lado de cá?
Quando era pequena, meu pai costumava dizer que aqui em cima, nessa lua redonda que ilumina a todos nós, mora São Jorge, o nosso padroeiro. É ele quem nos protege das injustiças, da indiferença e que, com a sua lança, espeta o dragão do mal, para que os pequenos possam dormir sem medo e tenham paz para sonhar com o dia de amanhã.
Ai, Senhor, mas é esse tal dia de amanhã que me deixa angustiada! Quando penso na criança que está em meu ventre, tento imaginar o que o destino reservou para ela.
Haverá uma escola para ensinar a ela a acreditar em si mesma e lutar para, um dia, ser alguém? Será que haverá um médico para cuidar dela no dia em que ficar doente? Será que conseguirá um bom lugar no mercado de trabalho? Será que poderá constituir uma família com dignidade?
Ou será que uma bala perdida vai atravessar o caminho dela?
Não, meu Senhor! São Jorge há de protegê-la e com a Sua bênção ela há de crescer sadia, inteligente, honesta e trabalhadora. Há de ser outra guerreira, como tantas que aqui nasceram e hoje, de alguma forma, são felizes – mas continuam lutando contra tantas desigualdades!
Senhor, protegei minha criança, e faça dela um instrumento para semear o Bem.”
Entre becos, ruas e vielas
“As dificuldades ensinam que a comunidade forma uma grande família. Vizinhos se ajudam, as tias aconselham, as crianças se entendem e todos acabam se dando as mãos porque os problemas geralmente são os mesmos, em todas os lares.
Pode faltar arroz, feijão, leite, mas a amizade fala mais alto. Existe sempre um jeitinho de ajudar e ser ajudado. Um sorriso, uma palavra amiga, um olhar de ternura. Aqui em cima, as imposições da vida nos obrigam a ser solidários, seja num temporal ou no fogo cruzado. No fundo, somos todos irmãos.
Se a comunidade pensa duas vezes em descer até o comércio, este é mais rápido e vai à comunidade. É um entra-e-sai de ambulantes oferecendo as mais diferentes mercadorias: roupas, comestíveis, panelas, produtos de limpeza, artigos de higiene, óculos escuros, óleo de bronzear, protetor solar, capas de celulares, cigarros a varejo e CDs para todos os gostos. Substituíram os ambulantes de antigamente, que vendiam aves, carne de porco, cestarias e fogareiros a querosene. São cenas que se misturam na memória, misturando passado e presente, sem que a gente dê conta de como o tempo voa.
Aqui, existem vizinhos que são do Santo, os que pregam as Sagradas Escrituras, os que louvam o Senhor sobre todas as coisas. Se falta de tudo um pouco, sobra fé. Graças a Deus!
É interessante quando a gente vê, bem cedinho, com o céu ainda escuro, os primeiros trabalhadores descerem para o batente. Quase todos fazem o sinal da cruz. Fico me perguntando: por que será? Talvez precisem de proteção para garantirem o sustento da família; ou, então, careçam de proteção especial para retornarem, no final do dia. A gente nunca sabe o que pode acontecer.
É uma gente muito valente. Além das angústias que envolvem a comunidade, eles ainda enfrentam transportes lotados, horas de engarrafamento e quando chegam no trabalho se submetem a exigências que não são muito diferentes daquelas do tempo da escravidão. Sejam eles operários da construção civil, garis, diaristas, e empregadas domésticas, enfim. A distância entre o pão nosso de cada dia e o pão que o diabo amassou é muito curta. Mas o povo engole, digere e toca em frente. Segue o jogo!, como diz o outro.
Nosso povo é tão bom que deixa as injustiças de lado, os esquecimentos e as promessas não cumpridas, mas continua acreditando no Brasil do futuro: forte, independente, próspero e amigo de sua gente. Renova as esperanças, arregaça as mangas e continua se empenhando para ajudar o Gigante a seguir o seu caminho.”
A sorte está lançada
“Quando meus olhos tentam enxergar mais longe que os limites da cidade, fico triste. Penso em outros brasileiros espalhados por este país a fora. Assim como nós, eles também não têm motivos para acreditar em novas promessas.
De vez em quando, recebemos visitas de gente que se diz bem-intencionada, preocupada com os problemas da comunidade. Falam da necessidade de diversas obras: rede de esgoto sanitário, abastecimento de água, contenção de encostas, e por aí vai. Prometem até bondinho, para poupar as pernas de nossos velhos. Deixam cartazes de campanha e santinhos de lembrança, sempre sorridentes e otimistas. Mas, afinal, eles estão rindo de quê? Ou de quem? Será da gente?
Basta conseguirem o seu objetivo para esquecer de tudo o que prometeram. E de todos que lhes abriram as portas. E o pior: deixam de cuidar até do que é essencial. Não temos mais hospitais, nem postos de saúde que nos atendam. Nossas escolas estão fechando, uma a uma. O desemprego aumenta. A violência cresce como uma bola de neve, arrastando a todos que estão em seu caminho.
Os problemas são tão graves que já não afetam apenas as camadas mais pobres da sociedade. Agora, corroem os calcanhares da classe média também. A tal pirâmide social está ruindo e os pedaços caem sobre nós.
(Sempre que o bebê chuta a minha barriga chego a pensar que, mesmo lá dentro, ele consegue captar os meus pensamentos. Parece uma forma de protestar. Tento me distrair com outra coisa, mas é difícil. Tadinho…)”
Salve-se quem puder!
“Não é preciso ser muito inteligente para perceber que a maioria desses problemas que afetam os pobres, quase pobres e futuros pobres é provocado pela má divisão da economia. Quanto maiores a ganância e o egoísmo de uns, maiores serão também a miséria, a fome e o total abandono de outros. Isso é próprio do ser humano e a casta dos brasileiros também está se especializando nisso. Não tá nem aí…
Essa gente privilegiada construiu um mundo particular para si. São milionários, moram em mansões, viajam para o mundo inteiro, são tratados por médicos renomados, enviam seus filhos para os melhores colégios e universidades, com a promessa de que, no futuro, serão eles que cuidarão do país. Fala sério, ô!
Enquanto isso, o outro prato da balança da justiça social mergulha no abismo. Não há meio termo entre Paraíso e Inferno. São dois pesos e duas medidas, destruindo todos os valores que aprendemos na escola.
“Criança, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!” – ainda me lembro do poema de Olavo Bilac, que a professora obrigava a gente a decorar, na ponta da língua.
“Criança, não verás nenhum país como este!” – e nós decorávamos tudo. Mais por respeito à professora do que pelas palavras de poeta.
Tempos em que os professores eram considerados os nossos segundos pais, tratados como verdadeiros mestres. Hoje, coitados… São humilhados de todas as formas, dentro e fora das salas de aula. Assim como os médicos do serviço público, que não recebem salários e são obrigados a tirar do próprio bolso para tentar salvar os pacientes, abandonados pelos corredores.
Os valores foram todos destruídos por quem deveria dar o exemplo. Perdemos a confiança, mas não a fé. Se não acreditarmos num futuro melhor, quem poderá?
No entanto, meu Senhor, como conseguirei ensinar esta criança a sonhar?”
O Dia da Comunidade
“O que nos leva a ser tão solidários e procurar sempre uma forma de festejar alguma coisa? São batizados, aniversários, noivados, casamentos e, de vez em quando, rola até um pagode no velório de alguém – é um tal de “gurufim”, como fiquei sabendo.
Se não existe um motivo oficial, procura-se outro. É a vitória no futebol, no samba, enfim, o importante é que a comunidade tenha a oportunidade de exercitar um convívio que é cada vez mais raro lá em baixo, naquele espaço que não nos pertence.
Aqui, tudo é difícil, mas existe sempre uma solução. Se a praia é longe, inventou-se a laje, onde as meninas se bronzeiam com uma formosura digna de Ipanema. Se o clube é distante, o funk arma o batidão em qualquer viela, espalhando o som de suas caixas pelas redondezas. É música o dia inteiro… Assim como o cheirinho de churrasco, que invade portas e janelas, trazendo gente de todos os lados.
A comunidade se pertence e acaba virando uma irmandade. E é exatamente isso que eu preciso ensinar a esta criança que carrego aqui dentro: mesmo com todos os revezes que povoam o nosso cotidiano, carregamos uma obrigação – que, assim como o Samba, não se aprende no colégio:
“Amarás o próximo como a ti mesmo”.
É por isso, Senhor, que viemos festejar: Na paz da criança, no amor da mulher, de gente humilde, que pede com fé.
Senhor, eu sou a Ilha!”
Comissão de Carnaval
Coordenador: Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, Laíla
Carnavalescos: Fran Sérgio e Cahê Rodrigues
Membros: Larissa Pereira, Allan Barbosa, Anderson Neto e Felipe Costa
Textos: Cláudio Vieira