"SER
DIFERENTE É NORMAL: O IMPÉRIO SERRANO FAZ A DIFERENÇA NO CARNAVAL"
Força
inovadora do carnaval desde sua fundação, o Império Serrano foi a primeira
escola de samba vinculada a um segmento profissional, os trabalhadores do
porto do Rio de Janeiro. Nem por isso se tornou um gueto: a diferença era
respeitada e havia lugar para todos. Jornalistas, funcionários públicos,
donas de casa também opinavam e participavam. Por isso surgiu de forma tão
forte e impressionante que se sagrou campeã, provocando violenta cisão na
entidade representativa das escolas de samba da época, já que as co-irmãs
se recusaram a aceitar a vitória da estreante.
Em sua origem está a luta pela liberdade de opinião e de expressão, que se
mantém até hoje. No Império Serrano todo mundo é igual, apesar das
diferenças, e o orgulho verde-e-branco recebe de braços abertos todos os
interessados em trabalhar unidos em prol de um objetivo comum, numa lição
de harmonioso convívio. O resultado está aí: sessenta anos de paixão e
glória, fazendo a diferença na história do samba.
Foi fácil?
Não. Nunca é fácil harmonizar o que não é igual. A dificuldade que o ser
humano tem de conviver com a diferença (seja ela estética, social,
religiosa, étnica ou cultural) é o grande mote do romance Notre-Dame de
Paris, que elevou o escritor francês Victor Hugo a figura máxima do
espírito literário do romantismo, movimento que valorizava o predomínio do
conteúdo sobre a forma. Na torre da catedral de Notre-Dame vive isolado o
sineiro Quasímodo, um homem de aparência deformada e feições distorcidas,
porém sensível às manifestações de beleza, como as diversas festividades
que acontecem em torno da catedral gótica. Adotado por uma autoridade
religiosa que fez da rigidez seu modo de vida, apaixona-se por uma cigana
e enfrenta uma série de peripécias por conta desse amor não correspondido.
Aceitar e
respeitar o outro como ele realmente é nunca foi tarefa simples, na
literatura como na vida real.
Na cidade alemã de Munique do final do século XIX um menino tímido, pouco
sociável e bastante indisciplinado entrou cedo para a abominada lista de
repetentes na escola. Alfabetizado somente aos nove anos de idade,
apresentando raciocínio lento e aparente falta de memória, a dificuldade
de aprendizado levou seus professores a crer que sofria algum tipo de
retardo mental. Acabou interessando-se pelos emaranhados de números e
cálculos da matemática e pela harmonia sublime da música, chegando a
dominar o violino. Revelou-se uma mente brilhante e autor de numerosos
trabalhos de física teórica; aplicando a teoria quântica à energia
radiante, chegou ao conceito de fótons, que lhe valeu o Prêmio Nobel.
Formulou a equação que seria a mais célebre do século XX, abrindo os
caminhos para a era atômica e esclarecendo a origem da energia solar.
Conhecida como teoria da relatividade, marcou profundamente a ciência
moderna, mas sua importância só foi reconhecida posteriormente,
transformando aquele “menino problema”, Albert Einstein, em um dos maiores
cientistas de todos os tempos.
Além de lidar
com a diversidade, há de se lidar também com a adversidade...
A infância marcada por procedimentos médicos e um terrível acidente
forjaram uma mulher fisicamente debilitada e deficiente. Foi quando a mãe
pendurou um espelho em cima de sua cama, na dolorosa convalescença, que
Frida Kahlo começou a pintar freneticamente. Sempre pintou a si mesma
alegando que “era o assunto que conhecia melhor”. Apaixonadamente
passional e extremante vaidosa, cobria-se de jóias, flores e vestidos
coloridos, tradicionalmente mexicanos, o que fez dela grande colecionadora
de amantes (de ambos os sexos). Frida chocava porque era diferente – e
orgulhosa – demais. Embora tenha usado tintas fortes para estampar suas
telas e entrado no mundo da vanguarda artística dos surrealistas, dizia
que nunca pintou sonhos, pois apenas pintava a própria realidade: uma vida
tumultuada por sofrimentos físicos e dramas emocionais. Ensinou-nos a
pintora mais importante do século XX:
“Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?”
O trabalho
dignifica o homem, e um gênio negro mostrou seu valor em verdadeiros
tesouros. Vivia do produto de suas mãos e um dia descobriu uma doença que
o degenerava lentamente. Como continuaria criando sua arte? Teria que
enterrar o dom dentro de si? Absolutamente não. Antônio Francisco Lisboa
não abandonou seu ofício. Quando as mãos se danificaram por completo,
amarrou nelas correias de couro para poder segurar seus instrumentos; com
os pés atingidos, foi obrigado a andar de joelhos. O povo o apelidou de
Aleijadinho. Foi difícil obter o reconhecimento de seu talento, pois
também não lhe perdoavam a condição de mestiço e, mesmo celebrado como
grande escultor e projetista, a cor mulata ainda mantinha erguidas as
barreiras do preconceito. Suas imagens sacras, profetas, altares e igrejas
permanecem como testemunho do desenvolvimento artístico de Minas Gerais no
século do ouro. A quantidade e a maestria de suas realizações levaram o
biógrafo francês, Germain Bazin, a chamá-lo de “Michelangelo tropical”.
A
sensibilidade e a competência revertem qualquer quadro que se apresente
desfavorável à primeira vista.
Lesionado no queixo pelo fórceps em seu nascimento, o violonista Noel Rosa
encarou sua “diferença” com filosofia bem-humorada e irônica como um bom
rapaz folgado. Ela nunca impediu seu feitiço de poeta de arrebatar
corações apaixonados.
Sua música tocou as ruas do Rio de Janeiro e ganhou notoriedade ainda
muito jovem, mas combatia o constrangimento que o defeito físico lhe
causava evitando grandes reuniões sociais e buscando refúgio em bares,
botequins e cabarés. Captou e, acima de tudo, criticou as transformações
de uma época de transição urbana carioca legitimando seu papel de cronista
do samba. A modernidade da eletricidade, gramofones, rádios, apitos de
fábricas e chaminés compunham um novo cotidiano e um modo de vida
“diferente”.
O talento é realmente soberano, invencível e aleatório: bafeja inclusive
os que não se enquadram adequadamente em padrões estabelecidos. Se ele não
discrimina, por que discriminar?
Do manicômio para a liberdade criativa, o estranho mundo de Arthur Bispo
de Rosário revelou um mestre das artes plásticas brasileiras com
reconhecimento internacional. Seus divinos trabalhos multicoloridos
consagraram seu delírio intelectual ao registrar para o Criador o universo
ao seu redor. E se “de perto ninguém é normal”, no carnaval se abre o
sanatório geral da sociedade, pois nos dias de folia as diferenças se
diluem e se igualam como na marcha carnavalesca Exuberante da “verdadeira
encarnação da alma musical brasileira”, o louco Ernesto Nazaré:
“(...) À folia! À folia!
Ao baile, TODOS
Neste brincar sem fim
À folia! À folia!
TODOS pulando assim (...)”
Jack Vasconcelos
Carnavalesco
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