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G.R.E.S. UNIDOS DA VILLA RICA

Sinopse 2006

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"MALANDRAGEM, ADEUS: COM EXCEÇÃO DO ZÉ, O RESTO É MANÉ..."

 

"Sapato brilhando, chapéu panamá, sorriso faceiro, dosagem alcoólica controlada no nível da simpatia, um olho na acompanhante, outro nas acompanhadas, os dois nas cabrochas do recinto.

Andar solto, cheio de ginga, papo despretensioso e mortal.

Fiel à boemia; à monogamia, jamais.

Trabalho, nem pensar. Taí o retrato falado do malandro imortalizado na nossa história. Eis a figura essencial da história do samba."

Não é de hoje que a malandragem está associada ao Rio de Janeiro, berço do samba. Tanto que não foi por acaso o surgimento da primeira escola de samba carioca, a "Deixa Falar", no bairro do Estácio, tradicional reduto da massa de desocupados e trabalhadores informais, envolvidos com pequenos furtos, biscates, jogatina e exploração de mulheres.

Assim como a malandragem, Ismael Silva, grande "bamba", também se criou no Estácio e foi um dos fundadores da "Deixa Falar" - que, no Carnaval de 1929, desfilou na Praça Onze em um espetáculo ainda bastante tímido, se comparado às proporções que alcançaria anos depois. O detalhe curioso - e malandro - é que grupo de foliões, grande parte formado por figuras bem manjadas, sobretudo nas delegacias, sambaram escoltados e protegidos justamente pela polícia.

Segundo o auto-denominado malandro Bezerra da Silva, malandragem e ilegalidade não fazem parte da mesma moeda: "Malandro é malandro, mané é mané". O que supostamente tenta diferenciar, de forma curta e grossa, é o malandro verdadeiro daquele (o tal mané) que extrapola na dose da malandragem e, digamos, "atropela o samba".

Porém o malandro - como tipo social e histórico - apareceu pela primeira vez em nossa literatura no romance "Memórias de um Sargento de Milícias", escrito em 1856 por Manuel Antônio de Almeida. Na obra, o autor capta intuitivamente que a emergência da malandragem como opção de vida dos pobres livres no século XIX resulta de um processo histórico. A obra retrata as mudanças ocorridas na mentalidade colonial no Rio de Janeiro do início do século XIX com a chegada da família real ao Brasil, numa linguagem seguindo os padrões clássicos da época, em meio às aventuras e desventuras do malandro carioca Leonardo, seus amores e dissabores, sua paixão cheia de obstáculos pela sonsa Luisinha, a sorte que veio bater à sua porta lhe presenteando com várias heranças e sua promoção ao cargo de Sargento de Milícias.

Mais tarde, entre 1920 e 1940, na "Os Bruzundangas", de Lima Barreto, no samba emergente, nas crônicas de Orestes Barbosa e de outros jornalistas e escritores, como Viriato Correa, a figura do malandro seria novamente abordada. Em paralelo, reaparece o "bamba", complementar e menos ambíguo, que ora se sobrepõe ao malandro, ora dele se diferencia.

Ambas as figuras tipificaram-se (quando não se originaram) nas "maltas"

dos capoeiras do século xix, que se espalharam por diversos bairros e freguesias cariocas. As primeiras maltas começaram a organizar-se mais ou menos em 1850, quando a capoeira começa a espalhar-se pelo Rio de Janeiro e absorver outros grupos, dentre eles imigrantes portugueses, negros libertos, intelectuais, policiais, jovens da elite, etc. Cada "malta" comandava uma região e não admitia a invasão de seu território. As "maltas" que mais se destacaram foram:

· Os "Guaiamus": de tradição mestiça, eram ligados aos Republicanos do Partido Liberal. Absorveram intelectuais, crioulos, homens livres e imigrantes.

Atuavam na região central.

· Os "Nagoas": de tradição escrava e africana, eram ligados aos monarquistas do Partido Conservador. Atuavam na periferia.

Os integrantes das "maltas" trajavam roupas brancas, calça pantalona com boca de sino, camisa ou terno de linho com sapato de bico fino. Usavam geralmente um lenço de seda no pescoço, que funcionava como proteção aos golpes de navalha. Um chapéu na cabeça e nas mãos uma faca, navalha ou bengala para qualquer imprevisto.

Durante o século referido, as maltas de capoeira aterrorizaram a população e as autoridades cariocas. Com a Proclamação da República a história passou a ser outra em nome da "Ordem e Progresso". O Marechal Deodoro da Fonseca, com apoio do então chefe de polícia do Distrito Federal Sampaio Ferraz , estava decidido a conseguir o que o "Império" não havia conseguido: o extermínio da prática da capoeira e das maltas. Para começar, autorizou uma mudança no código criminal, que é sintetizado no decreto 847 de 1890 e é intitulado "Dos Vadios e Capoeira".

Perseguidos pela polícia, aos poucos os chefes das "maltas" foram encarcerados, exilados ou exterminados.

Para alguns estudiosos, essas representações alimentam-se de indícios históricos de interações subculturais, as quais produziram efetivamente tipos de individualismo urbano (o dito "malandro") na cidade do Rio de Janeiro, que, posteriormente, alargaram-se, disseminaram-se e se metamorfosearam, mas cujas figuras originais ainda povoam o imaginário brasileiro.

Atualmente, segundo Mestre Camisa, mais de cinco milhões de brasileiros praticam a capoeira hoje em dia, arte que se originou nos estados da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. Mestre Camisa tem 50 anos e começou a gingar quando tinha apenas 10. Fundador da Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte Capoeira - Abada Capoeira, em 1988, foi um dos capoeiristas que participou das várias conversas promovidas pelo Ministério da Cultura para a elaboração do programa. Com uma vida toda voltada para o aprendizado da capoeira, Mestre camisa disseminou-a por muitos países, tornando-a internacional e conhecida mundialmente.

Entre 1930 e 1940, na chamada Era Vargas, e contrariando a ideologia do trabalho, a figura do malandro carioca se consolidou, e o processo de sua construção social, acabou inserido no bojo de um projeto de nação concebido no calor do embate entre o menosprezo do caráter mestiço do povo brasileiro e as aquelas que seriam suas conseqüências diretas: originalidade cultural recheada por enorme diversidade étnica e debilidade civilizacional, coroada pela repulsa ao espírito "moderno" do trabalho.

Marcado por um passado escravocrata, o malandro foi tentando encontrar um meio termo entre a afirmação de sua marginalidade e a pressão do Estado, que queria integrá-lo no lema positivista de "ordem e progresso". Inicialmente, o malandro recusou o trabalho formal, preferiu viver de bicos, e isso demandava certos talentos/habilidades, como prostituição, jogo, música etc. Todo malandro tinha uma mulher que "trabalhava" por ele. Ele batia nela, claro, quando ela saía da linha. E foi desse tipo de relação que surgiu a expressão: "mulher de malandro".

Nos ditos "bons tempos", a navalha era a arma do malandro, de preferência.

Mas, na verdade, esse objeto raramente era mortal. Desavença, o malandro resolvia na porrada, porém com elegância e uma certa ética. Morte, só quando a questão era muito grave. No mais, a navalha servia apenas para assustar ou dar um talho "educativo" numa mulher rebelde ou num desafeto.

Em 1935, numa entrevista para O Debate, Noel Rosa retomaria o tema da malandragem,

queixando-se: "O morro do Castelo foi abaixo e a polícia 'espantou' os malandros inveterados e 'escrachou as cabrochas'. Mas o malandro não desapareceu.

Transformou-se, simplesmente, com a sua cabrocha, para tapear a polícia.

Ele já está de gravata e chapéu de palha e ela usa meias de seda".

Contudo, a figura do malandro e seu modo de agir já tinham sido mote para um embate poético entre dois grandes sambistas. Em 1934, Wilson Batista lançou o samba-canção "Lenço no Pescoço", exaltando a típica figura do malandro, que muito se assemelhava a ele próprio, conhecido freqüentador dos redutos da malandragem carioca, presença habitual nas zonas de baixo meretrício, ao lado de figuras conhecidas pela polícia. Em inesperada resposta, Noel Rosa, já sambista famoso da Vila Isabel, que costumava cantar a malandragem em versos de exaltação, compôs "Rapaz folgado". Na letra, além de descaracterizar o malandro desenhado por Batista, Noel partia para o ataque pessoal. Assim teve início um embate musical, que se desenrolaria pelos meses seguintes

- para a felicidade da música popular brasileira. Batista criticou o rival em "O Mocinho da Vila" e ganhou de troco a genial "Feitiço da Vila", que, por sua vez, foi retrucada em "Conversa Fiada", um grande samba de Wilson Batista, mas com resposta arrebatadora: "Palpite infeliz", um retumbante sucesso de Noel Rosa, no qual exaltava a Vila Isabel e trazia em sua defesa os grandes redutos do samba carioca, tirando crédito da crítica do rival.

Batista, porém, não se deu por derrotado e lançou "Frankenstein da Vila", fazendo crítica ao defeito físico no rosto de Noel. O adversário não respondeu, e terminou o polêmico desafio em posição mais honrosa que o infeliz opositor.

No fundo, o estímulo para a guerra musical não partira da visível controvérsia entre malandragem e vadiagem. Sabia-se que ambos eram malandros de carteirinha, cada um a sua maneira, e só poderiam brigar por um único motivo: mulher.

Batista teria roubado de Noel o coração de uma moça, supostamente a dançarina de cabaré Ceci. Resumo da ópera: os dois "malandros" tiraram uma casquinha da desfrutável Ceci, produziram grandes sambas e, por fim, fizeram as pazes, tornando-se amigos. Eis que imperou a malandragem.

Numa época em que ser malandro implicava uma certa aura romântica e rebelde, o pernambucano João Francisco dos Santos, o mítico Madame Satã, podia se vangloriar das suas credenciais: era capoeirista e mestre no manuseio da navalha. Numa mistura contraditória de macheza valente com sensibilidade homossexual, assumido em plenos anos 30, ele reinava como camareiro, cozinheiro, transformista, leão-de-chácara e ladrão no submundo da Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro.

Lapa dos Arcos, pondo diante dos nossos olhos a densidade do passado ido e vivido porém presente; dos bares onde a saideira é eterna; dos conflitos envolvendo quem não leva desaforo pra casa.

Lapa de Miguelzinho, Meia-Noite, Edgar - malandros históricos.

Todos nós, cariocas, amamos a Lapa, somos a Lapa, com seus contrastes, lugar especial que o espírito do Rio sobrevoa, livre, leve, solto, bem-humorado, sentindo-se bem nessa zona livre de todas as censuras.

Lapa da malandragem. Dos becos e ladeiras, onde se guardam todas as preciosas histórias de um Rio boêmio e de bem com a vida e seus prazeres. Um deles, Heitor dos Prazeres que não tinha vindo a este mundo para viver de tristezas.

Desde pequeno, fazia valer o sobrenome, atraído irresistivelmente para o desenho e para a música. O menino Lino, como o chamavam a família e os amigos, era negro, e aos garotos de sua cor não era permitido praticar as artes dos brancos. Nada disso, entretanto, pôde detê-lo. A partir dos anos 20, ele mostrou aos cariocas que era bom de música. Com o passar do tempo, foi ficando mais malandro. Mas era um malandro do bem. Fugia de casa, tocava pela cidade, e voltava com os bolsos cheios de dinheiro para ajudar a família.

Heitor dos Prazeres cresceu e tornou-se uma figura lendária da história do samba e do carnaval carioca. Amigo dos bambas, ajudou a fundar algumas das mais importantes escolas de samba do Rio, a Mangueira, a Portela e a Imperatriz Leopoldinense.

Compôs sambas célebres e teve parceiros ilustres, como os mestres Pixinguinha e Cartola. Com Noel Rosa, assinou uma de suas marchas carnavalescas mais famosas, "Um pierrô apaixonado".

Em 1951, o Brasil inteiro saberia que ele também era um mestre com as tintas e os pincéis, o que pode ser conferido na exposição "Heitor dos Prazeres

- Um Pierrô Apaixonado", composta por telas que provam que, para este malandro incomum, música e pintura eram quase uma coisa só.

Contudo, a transformação mais radical da figura do malandro ocorreu na década de 1950, quando o malandro deixou de ser bandido e virou um cara esperto, cheio de lábia e com jogo de cintura.

Esse foi o malandro estilizado que acabaria inspirando Walt Disney a criar o Zé Carioca, atendendo a uma solicitação do governo norte-americano, que, no intuito de proteger o continente das ideologias nazistas, buscava uma maior aproximação com os países da América Latina.

O personagem, cujas principais características eram arrumar comida grátis, evitar o trabalho e conquistar garotas, fez sua estréia em alto estilo nos jornais estadunidenses, em outubro de 1942. A página inicial mostrava uma panorâmica do Rio de Janeiro, fechando lentamente no barraco que era a moradia de um jovem alegre e folgazão papagaio chamado Zé Carioca.

 

Ainda nesse período - e também no embalo da política de boa vizinhança implementada por Roosevelt -, o Bando da Lua acompanhava Carmem Miranda, vestido de chapéu e camisa listrada. Formado em 1931 no Rio de Janeiro, o Bando da Lua foi o primeiro no Brasil a harmonizar as vozes, seguindo a moda da época nos Estados Unidos, e com isso criou uma mania nacional. Gravaram vários discos com músicas de carnaval nos anos 1930. Ao todo, 38 discos, de 1931 até 1940.

Com o sucesso, excursionaram pela Argentina. Os "malandros cariocas", começaram a tocar com Carmem Miranda ainda nos anos 30. E, ao ser convidada para fazer uma turnê pelos Estados Unidos, a cantora exigiu que o grupo a acompanhasse.

Resultado da parceria: diversos espetáculos e longas-metragens produzidos por Hollywood.

Nos anos 60, o malandro sofre nova transformação e de novo desce para o asfalto. "Todo mundo podia ser malandro, o comerciante, o político, o cara esperto na esquina."

Malandro de verdade usava terno branco impecável, quase sempre gravata, cabelos rigorosamente engomados pela brilhantina e chapéu para sair à rua, com o qual cumprimentava as damas, como bom cavalheiro. Sim, senhor, esse pessoal tinha também educação. Sem falar no asseio impecável e no respeito às normas, mesmo na contravenção e no submundo, por mais incrível que possa parecer. Por exemplo, malandro subornava policial, mas jamais ousaria matar um policial. Isso era coisa da ralé, da escória, de uns pobres e miseráveis gatos pingados que viviam na sarjeta, rejeitados até mesmo nos prostíbulos mais decadentes.

Fábula sobre um certo Malandro Pelintra

"Aos 98 anos de idade, Moreira da Silva, internado e nas últimas para os homens - jamais para a espiritualidade! -, pede licença ao Pai Celestial e faz uma rápida visita à morada dos Anjos. Ao chegar no céu, fica estarrecido; não é nada daquilo que está escrito nos livros. Não existe paraíso, nem inferno, amarras, conceitos ou preconceitos humanos. A um só tempo, pessoas, lendas e personagens se misturam e se completam. Tudo é perfeição, amor e felicidade. Não há espaço para o sofrimento. Choro, só se for de alegria.

 

O sambista é recebido com toda a pompa por uma comitiva de querubins. Lima Barreto pega o violão, Viriato Correa improvisa a letra e Cartola empresta sua voz para homenagear o ilustre visitante. Capoeiristas dão piruetas sobre as nuvens, agitando suas poderosas asas fosforescentes para iluminar a noite.

As cabrochas, sempre muito perfumadas e sorridentes, balançam com tamanho entusiasmo e encanto as cadeiras, que Moreira da Silva já está a ponto de esquecer de sua última missão terrena e cair na farra. Wilson Batista e Noel Rosa fazem um brinde ao companheiro de copo, boemia e malandragem.

Ceci, o motivo do antigo desafeto entre Rosa e Batista, puxa uma cadeira e a oferece a Moreira, que, ainda maravilhado com tudo aquilo, senta-se, agradece, enche o copo e bebe um longo gole. Sua hora está próxima, mas, antes, precisa fazer algo muito importante. Por isso, veio pedir ajuda aos verdadeiros malandros.

- A noite não é mais a mesma - lamenta-se o compositor -, está cada vez mais triste. O bom malandro anda desasado, sem brilho, sem força. Gafieira, hoje é baile funk. Sapato lustrado, ninguém usa mais. Só andam de tênis.

O terno de linho virou jeans e camiseta suja, rasgada. Agora, navalha cospe fogo, é metralhadora. O pileque se transformou em vício, ameaça, corrupção, seqüestro. Nem o lenço se salvou, saiu do pescoço e foi parar na cara, para esconder a identidade do sujeito. Tudo lá embaixo, é desespero e dor.

- Tomou outro gole. Prosseguiu:

- Quem vai mandar daqui pra frente nas calçadas do Rio? Daí, como já estou mais pra cá do que pra lá, me antecipei um pouco e vim pedir socorro, em nome dos velhos tempos.

Abalados com as más notícias, todos perguntam em coro:

- Como é que poderemos ajudar o amigo, se já não somos mais daquele mundo?

- Arte não morre. Os compadres ainda são lembrados e festejados pelo tanto que fizeram para defender a boemia, o samba, as cabrochas, os menos favorecidos, enfim, por terem mostrado que malandro é malando, mané é mané. Aqui, surge o Zé Carioca, cheio de gingado e astúcia. E vem dele a idéia de pedirem ajuda ao Zé Pelintra.

- Não é ele o valentão - joga -, o defensor dos injustiçados?

Todos silenciam. Aos poucos, resolvem aceitar a proposta do aloprado Zé Carioca. Todos se ajoelham e invocam Zé Pelintra, que vem pendurado num rabo de um cometa. Mesmo já sabendo do que se trata, o caboclo os escuta com muita atenção. Mestre Zé Pilintra gosta muito de ser agradado com presentes, festas, ter sua roupa completa, é muito vaidoso e tem duas características marcantes: uma é de ser muito brincalhão, dançarino, mulherengo, outra é ficar mais sério, parado num canto assim como sua imagem observando o movimento ao seu redor, mas sem perder suas características. ele vem na linha de baianos e pretos velhos, fuma cigarro de palha, bebe batida de coco, pinga coquinhos ou simplesmente cachaça, sempre com sua tradicional vestimenta: calça branca, sapato branco (ou branco e vermelho), seu terno branco, sua gravata vermelha, seu chapéu branco com uma fita vermelha ou chapéu de palha e finalmente sua bengala. Depois de um bom gole de Jurema, acende um cigarro de palha, traga e, lançando a fumaça em círculos no rosto de Moreira da Silva, dá o veredicto:

- Ajudarei vosmecê. Hoje à noite, vou me dividir em muitos e entrar nas garrafas de cerveja. Quando os arruaceiros estiverem reunidos, começarei meu trabalho.

Dito e feito. Horas depois, os bares da Lapa começam a ser invadidos por todo tipo de gente da noite.

- Malandro de verdade, não precisa de tiro, resolve as desavenças no trago e no gogó! Se vocês são, de fato, filhos legítimos da boemia, sentem-se e bebam sem medo e sem culpa!

Lá pelas tantas, após um tal de encher e esvaziar copos, Zé Pelintra começa a agir. Nas garrafas dos verdadeiros malandros, o álcool se transforma rapidamente em força, gingado, virilidade, sedução. Tanto, que não demora nada para as cabrochas veteranas voltarem ao bar e se sentarem à mesa dos genuínos reis da noite.

Em contrapartida, para os manés, a bebida vai caindo feito ácido no estômago dos invasores: dá enjôo, desmaio, trança as pernas e enrola a língua da rapaziada.

Percebendo que seus namorados não passavam de manés metidos a besta, as cabrochas mais novas vão rapidamente mudando de time. Num piscar de olhos, todos já estão dançando e cantando em uma divertida roda de samba, que se arrastará até de manhãzinha.

Entidade de palavra, Zé Pelintra separa o joio do trigo. A boemia está de volta, alegre e livre dos falsos malandros.

De alto de uma nuvem dourada, o talentoso sambista Moreira da Silva, o mais malandro de todos, sorri feliz e em paz. Despede-se dos amigos eternos com um "até breve", pois sabe que, antes das nove da manhã, estará de volta

- só que na pele vaporosa e cintilante de um extraordinário Anjo."

Com a morte de Moreira da Silva, aos 98 anos de idade, acredita-se que tenha ido embora o último malandro. Malandro daqueles cantados por Jorge Benjor, que sabem que é bom ser honesto e são honestos só por malandragem. No idioma de Morengueira: "Se um vigarista soubesse quanto é gostoso estar do lado da lei, se tornaria honesto só por vigarismo". Este era o retrato fiel de Moreira. "A malandragem nunca existiu para mim. Sou um bípede mamífero que sempre trabalhou", pontificava.

O cantor e compositor Antônio Moreira da Silva, o Morengueira, criador do samba-de-breque, nasceu no Rio de Janeiro. Há alguma controvérsia sobre a data exata de seu nascimento, mas é ele quem informa: "Nasci em 1902, num 1º de abril, na rua Santo Henrique, hoje Carlos Vasconcelos, na Tijuca", e morreu em sua cidade natal, no dia seis de junho de 2000.

Como o bom malandro não anda sempre na linha, "que o trem pega", Moreira também tinha os pés bem fincados na orgia. Durante a juventude freqüentou rodas de baralho, botequins e a zona do meretrício. Conviveu com os malandros históricos da Lapa, gente como Brancura, Manoel Carretilha, Waldemar da Babilônia e João Cobra. E com bambas do Estácio, como Marçal, Bide, Baiaco e Ismael Silva. Tornou-se figura conhecida da boemia. "Convivi muito tempo no meio de malandros, e eles respeitavam minhas batucadas", dizia. "Eu sempre ia às festas na Praça Onze, onde tinha roda com rasteira, rabo-de-arraia.

Era magrinho, novinho, mas entrava na roda e era respeitado", comentava sem falsa modéstia. "Hoje estou humildemente, modestamente, na história do samba".

E na nossa historia social, ao longo deste último século, pudemos ver nas artes, no cinema, no teatro, na música, na televisão, na literatura, tipos diferenciados de malandros sendo homenageados, cantados e interpretados.

 

A Ópera do Malandro, de Chico Buarque de Holanda, estreou em julho de 1978, no Rio de Janeiro. Mas a Ópera continua absolutamente atual, se lembrarmos a crise de um País entregue à falcatrua, ao comércio de bundas, ao capital estrangeiro, à corrupção - questões prementes desde o final dos anos 70, quando a peça foi escrita.

Ambientada em um bordel, ela conta a história de um malandro carioca, tentando sobreviver nos anos 40, final da ditadura de Getúlio Vargas - clima bem parecido com o de 1978. Como espetáculo musical, que é, a trama gira em torno de Max, ídolo dos bordéis. A temática, como não poderia deixar de ser, retrata a malandragem brasileira no submundo da cidade do Rio de Janeiro, com todos os ingredientes capazes de nos transportar àquela época, com a chegada das meias de nylon e dos produtos norte-americanos, que entravam clandestinamente. Não muito diferente da cena das falsificações vendidas pelos camelôs de nossa cidade maravilhosa.

Para o espetáculo, Chico Buarque também compôs o samba "Homenagem ao Malandro", uma das melhores composições do musical: "Eu fui fazer um samba em homenagem / à nata da malandragem que conheço de outros carnavais / eu fui à Lapa e perdi a viagem / que aquela tal malandragem não existe mais..." E prossegue, retratando o "novo" malandro, "o malandro profissional", "oficial", "candidato a malandro federal". Até arrematar: "Mas o malandro pra valer / não espalha / aposentou a navalha / (...) / até trabalha / mora lá longe e chacoalha / num trem da Central...".

Trata-se de um samba rasgado, com direito a solo de trombone do grande Maciel, breques e uma adequada interpretação de Chico Buarque. No álbum duplo do musical, só lançado em dezembro de 1979, "Homenagem ao Malandro" é interpretado por Moreira da Silva.

E, para finalizar nosso passeio carnavalesco sobre a malandragem carioca, não poderíamos esquecer dos sambas bem-humorados sobre a malandragem, os quais foram marcantes na carreira do pernambucano Bezerra da Silva, que veio para o Rio de Janeiro aos 15 anos, escondido em um navio. Em contato com os blocos carnavalescos cariocas, ele desenvolveu o talento como cantor e compositor. Suas composições retratam a vida e o comportamento dos moradores da favela. Chegou a gravar discos que venderam cerca de três milhões de cópias. "É isso aí, malandragem, malandro é malandro, mas não é mané. Se liga!", dizia Bezerra.

E se o último malandro se foi, agora com exceção do Zé, o resto é mané....

Mas não tem jeito: no fim de cada madrugada, quando os albores da manhã dissolvem as trevas e trazem o imperioso chamado do trabalho, os "mais sensíveis"

ainda podem ter uma visão do malandro entrando por um dos becos, com seu chapéu de lado, a mulata pendurada no braço e a eterna navalha no bolso.

 

PEQUENO DICIONÁRIO DO MALANDRO CARIOCA

Achacador - Pessoa acostumada a tomar dinheiro emprestado
Água Pintada - Leite
Amarra - Pulseira de relógio
Araquiri - O mesmo que duvidoso. Se algo não é bom é de araquiri.
Amplexo - Abraço
Bife de padaria - Pão
Boate de lona - Circo
Buraco do Pano - Bolso da frente das calças
Cabreiro - Desconfiado
Calibrina - Cachaça
Campanear - Olhar, observar
Chá-de-urubu - Café
Chave-de-cadeia - Sinônimo de problema, aborrecimento. "Aquele(a) ali é chave-de-cadeia."
Chinfra - Pose
Derrepenguente - De repente
Desguiar - Desviar
Esculachar - Desleixar
Farol - Vigia/ou quando acende o farol!!!
Fio de Antena - Macarrão
Fritada - Tapa na cara
Gordurame - Comida, refeição
Igrisia - Rusga, problema, rixa
Maracanã - Prato fundo
Marola - Confusão
Mina - Menina, garota
Mixola, mixo - De pouco valor
Neca - Nada, não
Presepada - Zoeira
Porão - Bolso de trás das calças
Pichibéqui - Anel
Queimar - Ficar irritado. O mesmo que "morder" (gíria)
Sonar - Dormir
Vargulino - Vagabundo
Xavecada, xaveco - Embromação, enrolação

Severo Luzardo Filho
 

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